sábado, 10 de janeiro de 2009

A Volta do Inspetor Fonseca

"Pra começo de conversa, é bom que se diga que eu não morri, mesmo que muita gente tenha vibrado com o fato e alguns tenham feito isso mal-educadamente na minha presença, como foi o caso da minha ex-mulher. Na realidade, o que eu fiz foi bolar com o Trajano, meu colega delegado, um plano onde eu forjaria a minha própria morte pra ficar com o dinheiro do meu seguro de vida. Acabei mudando de idéia quando descobri que o boleto do mês anterior ainda não tinha sido pago, mas infelizmente, não tive tempo de avisar o Trajano porque naquele dia ele deixou o celular descarregado. O resultado é que o Trajano me deu dois tiros no peito, se esquecendo que, de acordo com o nosso combinado, as balas deveriam ser de festim. Além de puto com o Trajano, fiquei dois meses internado na UTI, o que foi uma merda a não ser pelo fato de que isso salvou a minha vida. Uma das poucas vantagens de estar numa UTI é que uma vez lá dentro, por ordens médicas, ninguém vem te avisar que seu plano de saúde não cobre o custo integral da sua internação. Só quando fui transferido para o quarto é que a administração me mostrou o montante da fatura, o que gerou a crise de hipertensão que me conduziu de volta à UTI por mais duas semanas. Depois da minha alta, comecei a receber telefonemas de uns capangas contratados pela direção do hospital onde eles manifestavam, com toda a simpatia, a firme pretensão de quebrar os meus braços caso eu não pagasse o que estava devendo. Numa das nossas conversas mais tensas, eu cheguei a propor a doação de um rim em troca do abatimento da minha dívida. A princípio, os capangas receberam a oferta com bons olhos, mas depois ela foi recusada quando eles descobriram que o rim que eu queria doar não era meu e sim da minha Tia Adelaide, que mora num asilo.

Confesso que por essas e outras, eu andava bastante deprimido e voltar ao trabalho não colaborava em nada pra melhora do meu humor. Fui reintegrado à corregedoria e no meu primeiro dia de trabalho, descobri que haviam dado a minha antiga mesa a um estagiário. De pronto, encaminhei ao Recursos Materiais a solicitação de uma mesa nova, mas enquanto meu pedido chafurdava na burocracia, fui obrigado a despachar minha papelada sentado no vaso sanitário, de onde tinha que me levantar cada vez que alguém resolvia usar o banheiro. O som da descarga e o ar pestilento lembravam o tempo todo que a minha vida estava uma merda e foi por isso que fiquei felicíssimo quando me convocaram para voltar à campo depois que um faxineiro foi assassinado em circunstâncias misteriosas numa fábrica de queijo.

Cheguei animadíssimo ao local do crime. Depois de semanas despachando numa privada, eu sabia que novos ares iriam me fazer muito bem, sem desconfiar que o interior da fábrica de queijo exalava um cheiro putrefato que fazia com que o ar do meu banheiro parecesse o ar de Campos do Jordão. Os funcionários aparentemente não se incomodavam com a fedentina, talvez porque fosse mais desagradável pra eles a obrigatoriedade do uso de um capacete que lembrava um daqueles chapéus do Mickey Mouse que são distribuídos na Disneylândia pros turistas. Aquela horda de funcionários tristonhos trajando um capacete tão rídiculo me provocou uma crise de riso incontrolável, que só acabou quando percebi que, por questões de segurança interna, eu também seria obrigado a usar o acessório. Olhei-me no espelho, concluí que o capacete do Mickey fazia um bom conjunto com o meu sobretudo e cheio de confiança, embarquei em mais uma jornada rumo a elucidação de um crime asqueiroso, sem saber que naquele momento, ao entrar naquela fábrica da morte, eu me arriscava mais do que um menino descalço que joga futebol usando como bola uma colméia de marimbondos.

Fui encaminhado até o setor de queijos petit suisse, onde dezenas de funcionários se acotovelavam em torno de um tonel de aproximadamente mil litros de leite, onde boiava o corpo do pobre faxineiro assassinado. O sangue havia tingido o leite de cor de rosa, dando ao conteúdo do tonel a aparência de um grande copo de Quik sabor morango, o que me fez salivar em grande profusão. Além disso, aquela visão me trouxe emocionantes lembranças da minha infância, e suspirei pensando que a pobreza da nossa família nunca permitiu que eu e os meus irmãos pudéssemos tomar Quik sabor morango no café da manhã. Lembro uma ocasião em que meu pai, cansado das reclamações dos filhos sobre esse fato, resolveu bater no liquidificador duas beterrabas num litro de água com maizena, e depois serviu pros filhos dizendo que o gosto era o mesmo. Nenhum de nós acreditou mas mesmo assim, ele obrigou cada filho a tomar pelo menos dois copos daquele caldo sob a ameaça da gente apanhar de cinto. Volta e meia meu pai nos ameaçava com o cinto e a nossa sorte é que sempre que ele tirava o acessório pra bater na gente suas calças caiam, e esse era o tempo que tínhamos pra escapar. Meu pai sempre foi um homem severo. Certa vez, ele me disse ao berros que eu deveria arranjar um emprego, pois caso contrário, seria expulso de casa. Assustado, eu respondi: “mas pai, eu só tenho quatro anos de idade!”, e foi nesse momento que ele tirou o cinto e suas calças cairam de novo.


Minha nostalgia foi interrompida quando os cadavéricos artelhos do Trajano encostaram em minhas costas. Mais uma vez, o meu colega delegado estava de prontidão para o trabalho antes de qualquer outro policial. O Trajano tinha acabado de ser promovido do cargo de delegado adjunto pra o cargo de delegado adjunto-senior. Na época, ele me disse que não sabia diferenciar um cargo do outro, e que a única coisa que tinha mudado depois da promoção era o seu salário, que agora estava vinte por cento menor. Na minha opinião, o Trajano nunca foi valorizado como mereceria um delegado tão competênte. Como eu disse, seu profissionalismo sempre o fazia chegar com muita antecedência ao local de um crime, e não raras vezes ele era obrigado a tomar um café na padaria enquanto o assassino ainda terminava de matar a vítima. Naquele dia da fábrica, notei que o Trajano estava com uma visível irritação cutânea que o deixava com o aspecto de um turista alemão em férias na Bahia e por isso quando ele me perguntou se eu estava “chocado”, eu achei que ele se referia ao aspecto da sua pele e de pronto respondi:

-Muito. Já foi ao dermatologista?

-Não, seu idiota! Estou perguntando se você não está chocado com a cena do crime!

-Já vi coisas piores, meu chapa, falei, relembrando o dia em que a minha ex-sogra estreou um maiô de duas peças durante uma viagem de famíla à Boissucanga.

-Ai!, gemeu o Trajano, enquanto se curvava de dor sobre si mesmo, tal qual uma ratoeira disparada acidentalmente.

-Tá sentindo alguma coisa?

-Comecei a ficar com essa alergia na cara depois que o dono da fábrica me ofereceu um pedaço de gorgonzola como cortesia. Mas o pior é que meu estômago está pegando fogo, o que nunca aconteceu comigo antes. E olha que eu almoço todos os dias no refeitório da corregedoria... Ai...

-Ok!, concluí, triunfante. O dono da fábrica tentou te envenenar! Chamem esse homem aqui, imediatamente!

Não sei se aquele capacete do Mickey tirava um pouco da seriedade da minha figura, mas o fato é que nenhum dos funcionários se mexeu para atender a minha solicitação. Notei, inclusive, que muitos soltavam discretas risadinhas e por isso, gritei que se não me trouxessem o patrão, todo mundo seria levado pra delegacia. Na carona do meu grito, todos os funcionários sairam correndo tal qual uma legião de ratos surpreendidos no meio da madrugada por uma dona de casa numa cozinha putrefata de uma casa de subúrbio. E minutos depois, o Seu Ernesto, o dono da fábrica, apareceu.


-Ernesto Ratto, empresário de laticínios. Desculpe o atraso, mas eu estava almoçando.


Olhei o relógio e disse prontamente:


-Às nove e meia da manhã? Quem almoçaria nesse horário?


-São meio-dia e doze. Obviamente seu relógio está parado, ele repondeu e foi nessa hora que eu descobri que tinha perdido o minha consulta com o urologista.


-Em que posso ajudá-lo?, perguntou Ernesto, palitando os imensos dentes.


-Não sei se o senhor sabe, mas tem um homem morto no seu tonel de leite.


-Claro que eu sei. Esse aí é o Severino, mais um idiota que não fará falta ao mundo.


-E qual é a sua versão para a morte do Severino?


-Suicídio, obviamente.


-Curioso porque o corpo apresenta pelo menos sete perfurações à bala. O senhor poderia me explicar como alguém se mata dessa maneira?


-Esse imbecil provavelmente fez seis tentativas frustadas antes de atingir algum orgão vital. O Severino era um incompetênte notório! Nunca fez nada direito! O senhor aceita um pedaço de queijo gorgonzola?


Concluí que aquela raiva toda contra o faxineiro já credenciava o Ernesto Ratto como um dos principais suspeitos daquele assassinato. Eu só precisaria fazer mais duas ou três perguntas para colocá-lo em contradição, mas como era hora do almoço e eu estava com muita fome, abocanhei inadivertidamente o queijo que me foi oferecido pelo empresário. Nesse momento, o Trajano deu um grito de dor e após um piripaque, caiu dentro no tonel de leite junto com o Severino. Foi quando lembrei que o Trajano provavelmente havia sido envenenado com o mesmo queijo que eu havia acabado de engolir e sentindo as primeiras pontadas no estômago e uma certeza profunda de que eu era um perfeito idiota, subi na borda do tonel e anunciei que o assassino era o Ernesto Ratto. Alguém me perguntou de quem o Ernesto era de fato o assassino: do faxineiro ou do Trajano. Em altos brados e carcomido pela dor e pelo desespero, eu gritei que, naquela altura, era melhor prender primeiro pra perguntar depois. E foi nessa hora que eu despenquei no tonel e perdi os sentidos.


Acordei na boa e velha UTI, deitado ao lado do meu colega delegado. Como o plano de saúde da corregedoria não cobria as despesas de dois pacientes de UTI ao mesmo tempo, me colocaram junto com o Trajano na mesma cama, o que não seria tão desagradável se ele não tivesse crises de flatulência incontroláveis após a sopinha do final de tarde. Foi ainda na UTI que nossos colegas da corregedoria nos contaram que o Ernesto era de fato o assassino do faxineiro, como eu havia suspeitado desde o início. Ao que parece, o Severino havia descoberto que os furos dos queijos suíços eram fabricados artificialmente com uns parafusos e queria dinheiro pra ficar de bico calado. Dias depois, o Trajano virou-se pra mim e, quase desfalecendo, disse algo como “eu sempre te amei”, o que me deixou bastante apreensivo, até porque estávamos dividindo a mesma cama. Foi nessa hora que as máquinas que mantinham o Trajano vivo começaram a apitar escandalosamente. Os médicos invadiram nosso quarto e tentaram reanimá-lo, sem sucesso. Durante algum tempo eu fiquei bastante deprimido com a morte do meu amigo, mas depois a depressão deu lugar à um ódio profundo, precisamente quando recebi alta do hospital e descobri que o Trajano tinha me colocado como fiador no seu contrato com o plano de saúde. O resultado é que a fortuna que eu já devia ao hospital triplicou, o que não me dá alternativas a não ser oferecer o meu rim e o rim da Tia Adelaide aos capangas em troca do abatimento dos juros.


Dois rins pelo preço de um! Acho dessa vez, eles amolecem."

Texto de Leonardo Cortez, retirado do blog Diário do Ganso - Um blog de Leonardo Cortez.










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